terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Além da forma e do vazio

No dojo é possível costurar um kesa, ajudado por outros praticantes. O kesa é o manto feito de retalhos encontrado em todas as tradições budistas.
O uso do kesa e a tradição de sua costura exata remonta às raízes do budismo e têm sido transmitidos por milhares de anos.
No Zen, o kesa é usualmente feito de material simples nas cores preta ou marrom. Entretanto, este colorido exemplar foi feito à mão pelo Mestre Kodo Sawaki (1880-1965) e presenteado a seu discípulo, Mestre Deishimaru. É usado até hoje em ocasiões cerimoniais no Templo Zen La Gendronière.
(tradução adaptada de: http://www.zen-berlin.org/en/dojo/)

O grande manto da libertação,
 verdadeiro campo além da forma e do vazio.
Vestimos agora o ensinamento daquele que é o que é,
para o nosso bem e de todos os seres senscientes. 
(Takkesage, o verso do kesa, recitado no início da cerimônia matinal)

Reza a tradição que o kesa seja feito à mão pelo próprio praticante. É parte do processo de ordenação, um treinamento de concentração e atenção plena onde procuramos manter a mente pura e livre.
Entretanto, quando recebi os preceitos e fiz os votos, junto com outros praticantes, não tinha essa informação. Eu era apenas uma praticante novata, um pouco assustada com a possibilidade de me tornar uma monja zen. Foi tudo muito rápido! Um dia, muito emocionada com um teishô (palestra sobre o Dharma) dado por meu professor, Monge Alcio Eido Soho, disse a ele que um dia gostaria de me tornar monja. Ele, sorridente, me respondeu: "Que bom! Mestre Tokuda chega daqui a um mês, vou falar com ele.". Fiquei totalmente atônita e com um sorriso abobalhado, incapaz de dizer qualquer coisa. Era um misto de felicidade e apreensão. Depois pedi que ele me explicasse no que consistia essa ordenação, quais os meus compromissos, etc. e fiquei tranquila, pois percebi que esse compromisso com Buda, Dharma e Sangha poderia fortalecer minha prática espiritual. Eu estava muito feliz por ter conhecido essa prática, era como se eu tivesse encontrado meu lugar no mundo depois de muito vagar.
Logo em seguida, ele me disse pra pedir a orientação da Monja Telma Jiho Seisen para fazer meu kesa. Tínhamos cerca de um mês para prepará-lo! Ela, sabiamente, preparou uma oficina no Templo Zen Nonin, com os praticantes que iriam ser ordenados, inclusive eu. Nos orientou a cortar e costurar as peças do kesa, à máquina, pois naquele curtíssimo espaço de tempo não conseguiríamos fazê-lo à mão. Nos nossos encontros ela ia ensinando e tirando nossas dúvidas, com muita paciência. Depois levávamos as peças pra terminar em casa. Eu nunca tinha "pilotado" uma máquina de costura! Pedi a máquina de minha mãe emprestada e ela foi nossa "assessora técnica", pois a máquina tinha alguns macetes que só ela entendia.
Fizemos tudo em três semanas e ao final da oficina, surpresa! Mestre Tokuda apareceu em pessoa na minha casa para aprovar o kesa de cada um de nós! Uma semana depois recebemos os preceitos e fizemos nossos votos no mosteiro de Eisho-Ji, em Pirenópolis-GO, numa cerimônia belíssima. Foi o momento mais emocionante de minha vida!
Depois tivemos que fazer também o rakusu (uma espécie de miniatura do kesa que usamos pendurado no pescoço), também às pressas, pois tínhamos que enviá-lo para Mestre Tokuda escrever nossos nomes de Dharma no verso antes de voltar para o Japão. Mais uma vez tivemos a ajuda da Monja Telma e concluímos quase tudo em uma noite. Algumas peças eu fiz à mão, como os envelopes do kesa e do rakusu e, posteriormente o zagu (pano de prostrações).
Foi um processo mágico, no qual tive que lidar com todas as minhas limitações e imperfeições. Ver o meu kesa pronto despertou em mim uma felicidade que eu nunca tinha experimentado. Sou absolutamente grata à Monja Telma e à minha mãe, Maria José, que me ajudaram nesse processo.
Quase um ano depois fiquei sabendo, através de outros praticantes, que o correto seria fazer o manto à mão. Fiquei um pouco preocupada, pois já estava perto da minha ordenação monástica e eu não teria tempo de fazer outro manto, muito menos à mão. Pensei: "Será que o meu manto não vale? Deu tanto trabalho pra fazer e tanta alegria quando ficou pronto!". Conversei com a Monja Telma sobre isso algumas vezes e ela sempre me tranquilizava e dizia que eu devia honrar o meu manto, não importava como ele tinha sido feito.
Quando fui ordenada, Mestre Tokuda pegou meu manto em suas mãos, observou-o detalhadamente e disse que estava muito bem feito. Fiquei muito feliz, mas ainda me incomodava o fato de não ter sido feito à mão, segundo as regras de costura zen. Era meu orgulho e  meu apego à forma se manifestando como perfeccionismo. Alguns dias depois da ordenação, Monja Telma perguntou ao Mestre Tokuda sobre essa questão de o manto ter sido feito à máquina, se isso era incorreto, ao que ele respondeu: "Não tem problema. No tempo de Mestre Dogen não tinha máquina, né?".
Que bom que meu manto "vale" do jeitinho que foi feito! Amo cada uma de suas imperfeições! Agora que sei que posso continuar usando-o fico até mais tranquila e mais motivada  ainda para fazer outro manto à mão, pois não posso perder essa preciosa oportunidade de prática. Fazer nosso próprio manto, seja como for, é criar nosso campo de prática. É como o zazen, uma prática além da forma e do vazio.
Gasshô.

5 comentários:

  1. Oi Valéria, minha amiga , cantora - monja. Adorei o teu blog. É muito lindo.

    E que bom que o Mestre Tokuda gostou do teu kesa feito à máquina. O que eu fiz à mão, parece que ele não gostou. Está errado.
    bj.
    Maria

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  2. Que coisa, hein?
    Ainda não consegui entender essa lógica do kesa...
    Talvez seja porque não tem nada a ver com lógica, né?! Pelo menos não com essa lógica aristotélica à qual estamos acostumados. Pra mim é como um koan!
    Acho que o kesa está mesmo muito além da forma e do vazio. Algo que só os grandes mestres como o Mestre Tokuda podem enxergar.
    Obrigada pelo seu comentário, amiga!
    Gasshô

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  3. Acho também que o que Mestre Tokuda enxerga em nossos kesas está muito além de certo ou errado, por isso não devemos ficar nem orgulhosos nem envergonhados se ele nos elogia ou critica. Isso seria reforçar nosso apego e aversão, não é mesmo?
    Suas críticas ou elogios me parecem ser um incentivo à nossa prática, ressaltando pontos que devemos observar.
    Lembrei-me agora que me senti muito criticada durante o nosso último sesshin, pois achei que estava fazendo tudo errado, apesar do meu esforço em acertar. Mas nada como um zazen após o outro para clarear um pouco nossa mente obscurecida pela ignorância! Vi o quanto estava sendo rígida e orgulhosa, totalmente apegada à forma, o que estava me impedindo de reconhecer com gratidão os ensinamentos e a paciência do Monge em me ensinar.
    Ainda bem que ao sentar em zazen temos a oportunidade de esvaziar nossas xícaras para receber e apreciar o verdadeiro ensinamento, puro e medicinal, como o chá que acaba de ser preparado.
    Gasshô

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  4. Verdade querida. Mestre Tokuda e o Monge exergam mesmo além. Da minha parte, acho que sempre há tempo para corrigir os meus erros. Pelo menos é o que eu espero.

    Bjs. Esperando que você coloque aqui um sambinha blim para a gente ouvir.

    Maria

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  5. Querida Valéria,
    adorei seu "blog kesa".
    venho neste pqno periodo de pretica fazendo o meu "kesa", ele eh feito em cada zazen que pratico. Vou explicar: Um dia falei com Monje Alcio que queria ser monje zen, e ele falou, depois se me ouvir com muita atencao e com um sorriso no rosto, um sonoro, Nao.
    Fiquei atonito e perdido e pior ainda com raiva, afinal de contas eu queria ser monje.
    Bem, foi ai que comecei a fazer o meu Kesa a costura-lo em cada pratica e em cada aula do Ricardo, agora morando em Brasilia, com a Monja Magda Gyoku En, lendo "Mente zen mente de principiante" nao estou tao distante de compreender, o Nao, do Monje Alcio.
    Fico feliz em escrever no seu blog, espero ve-los em breve.
    Felicidades mil Bjs no coracao.

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